Por que falar sobre diversidade com as crianças?

Como diria a poeta Wislawa Szymborska, “não há perguntas mais urgentes do que as perguntas ingênuas”. Afinal, a palavra “diversidade” carrega tanta importância que seja a ser ingênuo perguntar para que ela serve. Mas continuamos perguntando a mesma pergunta para chegar em respostas diferentes.
Quando a fiz à Ivana Jinkings, editora do selo infantil Boitatá, ela me respondeu como quem desenha no ar: “A criança olha para as coisas e acha que é isso, que o mundo está dado. Precisamos sair dos nossas bolhas protegidas. Outro dia, vi uma criança com uma boneca negra e pensei ‘é isso’”. Ivana fala sobre criação de referências, algo muito além da palavra diversidade, mas que se aplica quando o assunto é trabalhar o outro a partir da literatura, da arte, da experiência estética do mundo. Quer dizer, mesmo que aquela criança não tenha na sala nenhum colega negro, ela vai saber que o mundo não é branco. Vai entender que existe um outro que é diferente dela; que a diversidade tem cor, peso, sotaque.
É disso tudo que tratam os dois novos livros da Boitatá – braço infantil da editora Boitempo –, Monstro Rosa e Pássaro Amarelo, ambos da premiada escritora e ilustradora Olga de Dios, e que chegam neste mês de julho às livrarias depois do sucesso da coleção “Livros para o amanhã” (saiba mais aqui).

Um monstro rosa que não encontra o seu lugar em um mundo todo povoado de seres e coisas brancas. Um pássaro amarelo que não sabe voar. Quem nunca se sentiu como eles? Com uma peça a menos em um mundo que não perdoa a falta? Pela metade em uma sociedade feita só de pessoas inteiras?
Não é à toa que as duas obras chegam juntas ao mercado editorial. Como definiu a editora do selo, Thaisa Burani, “os dois livros terminam no mesmo lugar”. Os personagens se encontram em um lugar onde cada particularidade é usada a favor de quem a possui, como o bicho bolota, que podia chegar mais rápido porque rolava ao invés de andar, a rã de três olhos que podia olhar para todos os lados, e o monstro azul de braços compridos, que podia abraçar melhor todo mundo. Nesse sentido, Monstro Rosa e Pássaro Amarelo fazem lembrar o fantástico Os cinco esquisitos, da italiana Beatrice Alemagna, também leitura certeira para discutir diversidade.
Ao propor uma história sobre personagens desajustados e oprimidos em suas particularidades, os dois livros falam sobre como a construção do sujeito, hoje, está intimamente ligada à autoaceitação e ao desafio constante do padrão social de normalidade.
A literatura infantil, nesse contexto – se compreendida como linguagem artística e ferramenta de reaproximação com o real –, ajuda a criança a reconhecer o que é aparência e o que é valor; e, consequentemente, a construir referenciais próprios do que é bonito, bom, aceitável, normal. Afinal, por mais evidente que seja, é fácil esquecer: qualquer padrão é puramente construção social.
No livro Pink and Blue: Telling the Girls From the Boys in America (Rosa e Azul: diferenciando meninas de meninos nos EUA), a historiadora Jo B. Paoletti explica como e quando aconteceu a construção social da ideia de que rosa é cor de menina e azul de menino. “Somente durante a Primeira Guerra Mundial os tons pastéis começaram a ser usados para bebês – antes, optava-se simplesmente pelo branco. Além disso, naquela época, o rosa era a cor dos meninos, por ser ‘mais decidido e forte’, e que as meninas deviam vestir azul, ‘mais delicado e amável’”. Aqui, tem a reportagem completa sobre o assunto, no El País.

É desse tipo matéria que nos chega pronta, mas que temos a força de remodelar com as nossas próprias mãos, de que falam estes dois livros. Como define a própria editora, “Monstro Rosa é mais do que uma história sobre como as diferenças podem unir as pessoas, mas um verdadeiro grito de liberdade”. Liberdade para fora de um padrão que é da sociedade, e não do indivíduo. Liberdade para dentro de um padrão que é do outro, portanto, pode ou não ser diferente do quem estiver lendo. Se for, tanto melhor, pois desse contato nascem novas e mais possíveis formas de nos relacionarmos com o diferente.
Além disso, são livros que ensinam a olhar para um aparente empecilho como possibilidade para novas experiências. O Pássaro Amarelo, consciente de sua deficiência, investe em criar ele mesmo novas tecnologias de voo. Já o Monstro Rosa, que tão desengonçado não cabe em sua casa, resolve dormir abraçado com ela. Pequenas soluções que metaforizam a aceitação da diferença como parte natural do processo de aprendizagem de si mesmo.
Então, voltamos agora à pergunta ingênua – e por isso, urgente – do início deste texto: por que falar sobre diversidade com as crianças? Porque não há outra forma de experimentar o que é a própria realidade além do contato desmedido com os mais diferentes pontos de vista e jeitos de viver. Só há espírito crítico onde há conhecimento, e só há conhecimento onde há conhecimento.