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Precisamos falar sobre a arrogância no mundo dos livros: o perigo do “fundamentalismo leitor”

Das muitas publicações que colocam a literatura e o ato de ler em perspectiva, tomei contato recentemente com um que me chamou muito a atenção. O ensaísta espanhol Victor Moreno, no livro La manía de leer (editora Caballo de Troya, 2009), fala sobre o perigo do “fundamentalismo leitor”. Mas o que é isso? Como qualquer idealismo conservador, ele parte de um extremismo e de uma falsa ideia de dominação dos leitores sobre os não leitores. O “fundamentalismo leitor”, para ele, é toda ação que caricaturiza e deslegitima aquele que não lê, ao mesmo tempo em que veste o leitor com a mais perigosa das máscaras sociais: a da superioridade. Como se ler fosse movimento obrigatório, esvazia a leitura de sua principal característica: o prazer puro, individual, particular. Considerando a importância de incentivar nas crianças os reais valores em torno do que é um livro, e para que(m) ele serve, este é um assunto de urgência para educadores, professores, escritores e mediadores de leitura.


A teoria de Victor me interessou porque considero uma questão importante de se pensar, principalmente quando percebemos que grande parte das ações de incentivo à leitura está imbuída (ainda que inocentemente) de algumas dessas noções equivocadas do que é a leitura. Dizer que ler torna uma pessoa melhor é elitismo dos mais perversos, e, no entanto, fazemos isso a todo momento sem nem darmos conta.


“Acesso” é a palavra-chave desse engano, afinal, a verdadeira causa a ser defendida é o direito de contato com o livro, a partir do qual a pessoa pode decidir se o exerce ou não. Como diria o pesquisador Luiz Percival de Britto no livro O Revés do Avesso (editora Pulo do Gato, 2015), “poder ler é um direito. Ler é exercê-lo”. Ou seja, a única e verdadeira arbitrariedade é a exclusão, que priva possíveis leitores de sequer poder experimentar um livro.



Em lugares de não acesso, livro é privilégio, daí a arrogância desmedida que é qualificar alguém por sua relação ou não-relação com a leitura. Além do mais, é só pensar na quantidade de pessoas medíocres que conhecemos que têm uma vasta biblioteca em casa. Ou pensar em pessoas de saberes impressionantes que nem sequer sabem ler. Ler e ser não têm relação entre si, ainda que nos façam acreditar nisso na escola, na aula de língua portuguesa, no ambiente escolarizante em que tomamos contato com a palavra escrita.


Por isso é que nós mesmos acreditamos na falsa superioridade do letramento, e com naturalidade assombrosa. A armadilha é fácil, quase sempre colorida, então caímos e caímos de novo. No entanto, devíamos saber que a leitura é só mais um dos tantos buracos de fechadura que encontramos ao longo da vida: nos oferecem olhar o mundo de outro jeito, e podemos aceitar ou não, sem que na segunda opção esteja implícito nenhum tipo de escolha por uma vida menor. Afinal, um livro não pode com uma pessoa mais do que um abraço: ou toca, ou não toca. Leitura é acontecimento.


Victor diz em seu livro que a leitura nada mais é do que uma espécie de caixa de ferramentas, “que podem e devem contribuir para melhorar o ambiente em que os indivíduos e a sociedade tecem suas tarefas”. A promessa da leitura não é fazer alguém melhor, mas sim exercitar o poder da escolha, a possibilidade de multiplicar o olhar, o vislumbre de uma capacidade a mais, entre tantas. Ou não. Afinal, o mundo dos livros é tão orgânico e maravilhosamente mutante como qualquer outro mundo.



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