A infância segundo Guimarães Rosa, Machado de Assis, Mário de Andrade
O nome deste espaço tem a palavra garimpo no meio. E é disso que se trata: escavar, escavar, até encontrar muitas vezes o que sempre esteve ali, na superfície. Na literatura infantojuvenil, é frequente nos deixarmos limitar pelos grandes cânones, os tais clássicos irrefutáveis, insuperáveis, inquestionáveis e outros tantos adjetivos pomposos.
Mas os grandes livrões da infância são muitas vezes tão indiscutivelmente bons que podemos julgar conhecê-los por completo sem nunca ter verdadeiramente bebido na fonte ou visitado as obras nos pedestais onde eles foram colocados, essa espécie de "cume olímpico", como define a crítica literária argentina Cecilia Bajour no livro "Ouvir nas entrelinhas - O valor da escuta nas práticas de leitura" (livro delicioso publicado pela Pulo do Gato!). Estamos cercados de livros assim, "títulos dos quais muitas vezes só conhecemos a casca, sem nunca termos fincado os dentes em sua polpa". E o mesmo acontece com os autores, os grandes, os de sempre.
Eu andava com caraminholas dessa natureza na cabeça quando conheci, em um sebo discreto no meio do centro de São Paulo, um livro que jogou uma nova luz sobre essa questão: a importância de conhecer o conhecido.
O nome do volume que saltou na minha frente - amarelo, pequenino e singelo como sua proposta - é "A palavra é...criança", da editora Scipione, publicado em 1988. Dentro dele, uma reunião de contos de Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Guimarães Rosa. Nada de muito extraordinário até aí, só mais uma entre tantas antologias temáticas (fazem parte desta série títulos sobre a palavra mistério, festa, amor). Mas só um conjunto sobre a criança me chamaria tanto a atenção. Afinal, por baixo do verniz das trajetórias consolidadas desses escritores, está o pensamento crítico de cada um em relação à infância, a "polpa" a que a Cecilia se referia.
O que pensavam sobre ser criança? Escritores que conhecemos aparentemente tão bem de seus territórios seguro, de lá dos livros adultos, teriam tanto assim a revelar? As narrativas reunidas são, de certa maneira, cíclicas: o sofrimento vivido pelas pequenas ocasiões da infância, como cortar os cachos castanhos ou vivenciar a morte, retornam mais tarde na vida adulta com outras formas de ser. É o homem que vai se formando a partir de perdas sucessivas, “no infinito dos sofrimentos humanos”.
A escolha dos textos foi feita por Ricardo Ramos, neto de Graciliano Ramos. O resultado é uma cartografia da infância alinhavada por palavras certeiras, que sempre dizem mais do que parecem estar dizendo. Tem Machado de Assis narrando o primeiro contato de um menino com a morte; Domingos Pellegrini refletindo sobre o que sobram das lembranças de nossos primeiros anos; Mário de Andrade alongando os horizontes de seus próprios minisofrimentos de garoto para narrar o trauma do menino que é obrigado a cortar seus cachos com o estímulo de que iria se tornar um homem. Mas afinal, uma criança de três anos não quer ser um homem, quer ser menino.
Todos os textos têm em comum o fato de contarem a infância de outros tempos, crianças que tinham medo dos pais, dos castigos, de abrir a boca para perguntar ou a cabeça para imaginar. Narrativas que foram diluídas no tempo e na bibliografia dos seus autores.
Contar mais do que isso é estragar a descoberta, mas o que dá para dizer é o óbvio: não foram estes os textos que tornaram famosos os escritores aqui reunidos. Talvez fosse literatura pequena demais, ou talvez o nosso olhar de leitor é que esteve treinado para apreciar os assuntos maiores, mais importantes. Aqui embaixo, alguns achados deste pequeno achado.

Machado de Assis - Umas férias
"Tão longe estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai morrera deveras. Não se tratava de um dia santo, com sua folga e recreio; não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não é coisa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. (...) Nem por isso, os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha memória."
Guimarães Rosa - As margens da alegria
"Assim um crescer e desconter-se - certo como o ato de respirar - o de fugir para o espaço em branco. O Menino. (...)
"Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido."
Domingos Pellegrini Jr. - Domingo
"O pai estava olhando e ele nadou, nadou e parou pra descansar, os pés desceram na água fria e se debateu, perdeu fôlego e logo estava afundando e debatendo, os pés já na água gelada - mas bracejou pra cima, saiu, viu o pai distraído olhando pra outro lado. Então estava sozinho! Bracejou mais, enfiando a cabeça na água até o corpo nivelar, e voltou nadando, nem acreditou quando trombou com o pai. Era a primeira vez que afogava, e a primeira vez que se salvava, sozinho. Mas o pai nem tinha percebido."
"O pai garante que toda coisa gostosa é assim mesmo: a gente sempre quer que a primeira vez seja a última, até a próxima vez."
Mário de Andrade - Tempo da camisolinha
"Guardo esta fotografia porque se ela não me perdoa do que tenho sido, ao menos me explica. Dou a impressão de uma monstruosidade insubordinada. Meu irmão, com seus oito anos, é uma criança integral, olhar vazio de experiência, rosto rechonchudo e lisinho, sem caráter fixo, sem malícia, a própria imagem da infância."
"Eu brincava por ali tudo, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava umas olhadelas para a banda dele, desejoso de consolar. Fui chegando com ar de quem não quer e perguntei o que ele tinha. O operário primeiro deu de ombros, português, bruto, bárbaro, longe de consentir na carícia da minha pergunta infantil. Mas estava com uns olhos tão tristes, o bigode caía tanto, desolado, que insisti no meu carinho e perguntei mais outra vez o que ele tinha:
- Má sorte - ele resmungou, mais a si mesmo que a mim."
“A feiúra dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura de sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: “Você ficou um homem, assim!” Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho.”