Ernesto: uma ode à empatia e à diferença


Sabe aquele poema do Fernando Pessoa que diz “Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”? Talvez você se lembre dele quando conhecer o Ernesto. Mas quem é Ernesto? Ele é você, sou eu, somos todos um pouco por dia. E é também o novo livro da amada dupla Blandina Franco e & José Carlos Lollo, ou Blandollo, como eles chamam. Nos últimos cinco anos, eles produziram juntos – ela escrevendo e ele desenhando – mais de 30 livros, como A Raiva, Este não é um livro de princesas, e O Coiso Estranho.
Ernesto acabou de sair pela Companhia das Letrinhas, e é impossível não querer falar dele.
Ernesto é livro de um personagem só. Nas primeiras e poucas palavras da história, o leitor fica sabendo que ele é feio, bobo, só usa roupas velhas, não sabe agradar ninguém. Ou melhor, fica sabendo que é isso o que as outras pessoas dizem que ele é. E isso muda tudo.


As descrições de como Ernesto se comporta, se veste e fala vão isolando o personagem até que a história toma um rumo horripilante (sem spoilers!). De repente, a história acaba. E o livro provoca: "ué, não gostou de como essa história termina? E segue com o trecho que melhor resume a sua razão de existir: “mas às vezes é assim que algumas histórias acabam". Depois, cutuca ainda mais fundo: “Tem gente que pensa que quando acabam assim, não é culpa de ninguém”.


Com muito bom humor e um tantinho refinado de ironia, o livro não didatiza o assunto do bullying, da diferença e da exclusão, mas sim materializa o preconceito em uma história de fácil identificação, que emociona e chacoalha nossas visões de mundo. Afinal, se não conhecemos tantos Ernestos assim, alguém nos esconde deles - a sociedade que nos cobra perfeição, a mídia que reverencia determinados tipos sociais, ou os próprios Ernestos, que não se sentem encorajados a exibir seus fracassos. Algo de muito errado existe se não conseguimos nomear a exclusão que sentimos quando algo não sai como o planejado em nossa forma de ser e agir, e este livro é sobre isso.
Uma história que não deixa ninguém de fora, afinal, se o leitor não for o próprio Ernesto, ao menos ele vai ser provocado a se colocar na pele do outro. Para a pesquisadora de literatura infantil Fanny Abramovich, "em uma história, pode-se descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outras regras, outra ética, outra ótica” (do livro Literatura infantil: gostosuras e bobices). É dessa “outra ótica” que Ernesto é feito.
As tais “outras pessoas” que o livro não mostra podem ser uma sala de aula, um grupo de amigos, um bairro inteiro, uma sociedade toda. Afinal, de quantos Ernestos somos feitos? O julgamento ao diferente habita as nossas relações mesmo que nos consideremos pessoas progressistas, bem resolvidas, esclarecidas. E as crianças também precisam receber ferramentas para pensar sobre isso desde sempre.
Ao tornar protagonista um personagem desajustado, o livro faz um olho no olho com as crianças sobre solidão, isolamento social e, principalmente, respeito. Esta é uma narrativa não convencional que faz pensar em quantas vezes adotamos padrões de comportamento social que reprimem ou excluem o diferente, e coloca o leitor na posição de assumir culpas necessárias de que vivemos tentando nos esquivar.
Talvez por faltarem em nossas trajetórias leitoras e de vida mais exemplos de Ernestos é que tantas vezes nos falte energia para subverter o estereótipo do que é ser bem-sucedido, bonito, agradável e aceito. Por isso, nada mais saudável do que ensinar uma criança a questionar referenciais impostos.
Lembrando mais uma vez do poema do Pessoa, chegamos mais perto do que sofrem os Ernestos apenas por serem quem são: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho”.
O Garimpo foi conversar com a Blandina sobre esta e outras histórias, e acabou descobrindo a existência de uma gaveta de ideias transbordantes. Veja só!

Garimpo Miúdo - Uma vez, e estava em uma livraria e um pai, todo feliz, veio até mim sem nem me conhecer com um livro seu nas mãos. Era “Isso é meu!”. Ele disse “Você tem que conhecer esse aqui. Lá em casa foi a salvação, meu filho nunca se entendeu melhor com o irmão!”. Lembrei disso hoje e imaginei como deve ser para o escritor, essa responsabilidade de “servir para” alguma coisa, educar, explicar. O que você pensa sobre esse potencial didatizante da literatura infantil?
Blandina Franco - Acho uma delicia. É muito legal quando as crianças tiram alguma coisa das histórias para a vida delas e também quando os pais percebem isso acontecendo. Acho que é mais ou menos isso que queremos quando contamos uma história, que alguém, em algum lugar, divida essa história com a gente, mesmo a gente não estando lá pra ver isso acontecer. Uma história bem contada é uma boa maneira de passar alguns valores e ajudar a resolver problemas que as crianças nem sabem que têm, mas tenho que confessar que nunca escrevo pensando em passar essa ou aquela lição. Toda história tem várias mensagens dentro delas, algumas mais claras e outras que são só “divirta-se com a história”. Mas sempre, em todas elas, o que eu mais quero ver acontecer é a criança se divertir com aquilo e assim transformar o livro em uma brincadeira divertida que irá ajudar a criança a gostar de ler. Porque acredito que a leitura é muito importante na vida de todo mundo e se a criança aprender a gostar de ler em pequena, mesmo que seja apenas se divertindo, isso já é uma maravilha
A questão da mediação é algo que você considera na hora de compor uma história? Ou seja, se a criança vai conseguir chegar sozinha ao lugar que o livro propõe. O que você acha sobre o papel do mediador?
Acho o mediador quase tão importante quanto o autor na literatura infantil. Um bom mediador pode fazer a criança amar a história e um não muito preparado pode contar a história de maneira descompassada e a criança odiar. Então, sempre conto com o mediador quando penso na história, mas de uma maneira um tanto quanto maluca, imagino sempre que o mediador é alguém exatamente igual a mim e que a história será contada exatamente como estou imaginando. Acho que essa é a única maneira que posso imaginar isso. Sei que nas nossas histórias existem algumas coisas, principalmente palavras que as crianças não conhecem. Sei disso porque fico pesquisando sinônimos no dicionário para colorir os textos. Mas imagino que o mediador conheça a palavra ou, caso não conheça, que irá procurar no dicionário seu significado e gostar de fazer isso ou até mesmo de apresentar o dicionário para a criança, transformando a leitura em uma brincadeira.
O tema principal de “Ernesto” é a atenção para o diferente. Para compor o livro, você pesquisou outros títulos afins? Qual o significado pra você de falar sobre diversidade com os pequenos?
A história do Ernesto, como quase todas as histórias que contamos, nasceu quase que já pronta. Os livros do Circo Blandollo geralmente nascem de situações que presenciamos ou de como imaginamos que as crianças agem diante de certas situações.
A história do Ernesto nasceu da falta que a gente sentiu de encontrar livros que falassem sobre bullying com as crianças sem serem professorais. Comecei a imaginar o quanto dizer para uma criança o que o outro sente realmente afeta essa criança. Comecei a pensar se não seria mais eficiente fazer com que o leitor se colocasse no lugar da pessoa que está passando pela situação desagradável, queria procurar uma maneira de criar algum tipo de empatia entre o leitor e o protagonista da história, e deixando o Ernesto ter um final triste seria uma boa maneira de dizer que nem sempre o final é legal. Que às vezes as pessoas ficam tristes com o que falamos deles. A vida deles continua e pode continuar triste.
Ernesto tem um desfecho que surpreende quem está habituado a histórias felizes. A literatura infantil tem esse papel, de acostumar a criança a controlar expectativas?
A literatura infantil tem o papel de ajudar as crianças a lidarem com certas coisas que elas não entendem bem, entender coisas que elas sentem e não sabem muito bem o que são. Além de divertir, lógico. Acho complicado definir um papel para qualquer literatura. Ela serve para controlar expectativas, para abrir o leque de expectativas, para só divertir, para passar mensagens que a gente nem sabe que existe na história, para levar crianças presas a outros continente, abrir portas e criar estradas. A literatura é diversão, remédio, saída e, se o livro for chato, chateação.
Uma narrativa não tradicional como essa requer que tipos de cuidado de quem escreve?
Qualquer narrativa requer o mesmo tipo de cuidado: fazer sentido e ser verdadeira e honesta. Narrativas não tradicionais são um risco. Às vezes dão certo.
O que te atrai mais na hora de definir um assunto, a ausência dele na literatura ou o excesso mal trabalhado? Por exemplo, livros sobre diversidade parecem ser o assunto do momento, mas a qualidade não é a mesma em todos eles, alguns parecem se importar só em aproveitar o momento.
Eu não me preocupo muito em definir um assunto. Geralmente, as histórias pulam na nossa frente e quando isso acontece a gente tem que escrevê-la. Na maioria das vezes, o único cuidado que é preciso ter é pesquisar um pouco pra ver se essa ideia que você acabou de ter já foi contada por alguém antes de você.
Outras vezes, um assunto é tão repisado em algum momento que o cuidado é o de escrever uma anti-história para aquele assunto, como foi o caso do livro “Esse não é um livro de princesas” que a gente editou numa época em que víamos nas livrarias uma quantidade absurda de livros ensinando as meninas a serem princesas e isso me pareceu uma coisa muito boba. Se todas as meninas podiam ser princesa qual seria a graça de ser uma? E por que ser uma princesa? Será mesmo que ser uma princesa era melhor?
Quais obras você citaria como revolucionárias no sentido de colocar a criança em contato com um mundo contrário ao dela?
Eu acredito que se a criança não tem contato com aquele mundo da história, ela não vai dizer nada para ela. Para a história ser revolucionária, ela precisa ter algum ponto de contato com o mundo que a criança conhece. O que existe são temas difíceis, como depressão, que Shaun Tan tratou em um livro maravilhoso chamado “A árvore vermelha”, ou o alcoolismo no maravilhoso “ O coração e a Garrafa” de Oliver Jeffers e algumas questões sociais do lindo “Os invisíveis”, de Tino Freitas e Renato Moriconi.
Você descobriu que queria escrever livros para crianças quando tinha mais de 40 anos e, para nossa sorte, nunca mais parou. O que te levou a essa descoberta?
Fiz um curso de contação de histórias com minha irmã e nesse curso nós tínhamos que encapar um caderno com um tecido igual ao de algum pijama que usávamos quando éramos crianças. O meu caderno ficou lindo, encapado com uma flanela de florzinhas. Nesse caderno a gente tinha que escrever as histórias que mais gostávamos e eu ao invés de pesquisar histórias, comecei a escrever as minhas. Minha irmã leu (metida!), gostou e mandou pra um gramático que me aconselhou a editar. Então editei. E quando encontrei o Lollo para ser meu parceiro, não parei mais. Costumo dizer que roubo no jogo, já que escrevo as histórias que eu invento e as que ele inventa também.
A parceria Blandina & Lollo produziu nos últimos cinco anos mais de trinta livros. O que há ainda por explorar? Fico pensando se os autores têm uma gaveta de ideias “tabus”. Há algum assunto que você evite por não saber ainda a melhor forma de dizer?
A gente tem uma gaveta de ideias que ainda não deu tempo de finalizar, mas nenhuma delas é tabu, tem livro sobre a morte, sobre gente chata, sobre guerra. A gente só não teve tempo ainda de mastigar bem o texto e ilustrar. As ideias, infelizmente, costumam ser mais rápidas do que a minha capacidade de escrever e a do Lollo de desenhar. Então temos sim uma gaveta transbordando de ideias, mas elas não estão presas lá porque são algum tipo de tabu, mas sim por falta de tempo para se dedicar só aos livros. Se dependesse só dessa gaveta, poderíamos ter mais de 30 livros nos próximos 5 anos.

Quem quiser garimpar mais o trabalho de Blandina & Lollo, clique aqui e conheça o Circo Blandollo.
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