top of page

Como falar sobre morte com criatividade, leveza e naturalidade?

Pode morrer uma ideia, uma certeza, uma pessoa. Nos começos e nos finais de tudo, tem morte. E cada recomeço está repleto dos vestígios daquilo que passou. A morte é ciclo. É ao mesmo tempo da vida, do susto, do mistério. Natural, inevitável, tabu, susto, vendaval. A morte é o que não conseguimos dizer. Que coisa estranha é esta. Está em tudo, e mesmo assim fugimos dela todos os dias. Nas conversas, nas histórias, na escolha de um assunto para escrever.


As crianças não entendem e os adultos ignoram, e nesse movimento amedrontado, crescemos traumatizados antes mesmo de vivenciar o trauma. Por isso é que livros que falam sobre isso são como clareiras no meio de uma floresta fechada. Livros infantis, ainda mais. Precisamos abrir essas clareiras para falar da vida.


A literatura pode ajudar não só como recurso terapêutico para elaborar uma perda, mas principalmente para educar os pequenos num momento anterior, antes de se tornarem adultos cheios de medo de pensar. Com a cautela de um garimpeiro só e considerando as mais diferentes abordagens e formatos, aqui vão algumas dicas de como falar sobre morte com as crianças, com os adultos, com todo mundo.

1. Para onde vamos quando desaparecemos?



Certeza, certeza absoluta, ninguém tem sobre a questão "para onde vamos quando desaparecemos?". Mas seja como for, se algum dia você ficar em dúvida se é possível falar de morte com poesia e brincadeira, a resposta é este livro. Desses que você quer ter, e depois ter de novo, só para poder dar a alguém.

Se desaparecemos sem ninguém dar conta,

não chegamos a desaparecer.

Porque, para alguma coisa desaparecer,

é preciso que alguém a tenha visto primeiro

e dado pela sua falta depois.

Para que alguma coisa desapareça

são precisos sempre dois.

(Um que fica e um que desaparece)


Escrito por Isabel Minhós com ilustrações de Bernardo P. Carvalho, o livro joga cor e luz sobre um tema tão castigado pela sombra do desconhecido. Publicado originalmente pela editora Planeta Tangerina, de Portugal, o livro chegou ao Brasil em 2015 pelas mãos da Tordesilhinhas (Editora Alaúde).


A ideia aqui é a de um narrador imaginário que faz perguntas sobre todas as coisas. Por exemplo, o porquê de nossas meias desaparecem tão misteriosamente, ou pra onde vai a areia da praia varrida pelo vento e o barulho quando tudo silencia. Afinal, quando já não estivermos aqui, quem vai cuidar das nossas coisas? Dúvidas muito possíveis do ponto de vista de quem ainda está elaborando a complexidade do mundo.


Quem conhece Isabel de seus outros livros (Enquanto meu cabelo crescia, Lá em casa somos, Coração de mãe e outros), vai reconhecê-la de pronto nesta história, cheias de tentativas bem-sucedidas de tirar o peso das coisas. Inclassificável do ponto de vista de classificação etária ou gênero, este livro parece saber perfeitamente na definição do crítico português Luís Almeida Eça: “Um livro que ajuda a crescer”.

2. O urso e o gato-montês


- Sabe passarinho – o urso disse -, você não acha curioso que todas as manhãs sejam “esta manhã”? Foi assim ontem e anteontem. E amanhã teremos outra manhã e novamente depois de amanhã... E todas elas certamente serão “esta manhã”. Estaremos sempre “nesta manhã”. Sempre juntos. Não é?


É com esse arroubo de lirismo que começa o livro O urso e o gato-montês (Brinque Book, 2012). Um urso que reflete sobre a aparente monotonia da vida e de repente: PUM! Perde o melhor amigo. Então, ele entende que algumas manhãs nascem diferentes antes mesmo de começar.


Dos japoneses Kazumi Yumoto e Komako Sakai, a história aqui é muito maior do que as palavras que a contam. A narrativa cheia de poesia é quase um ninar, e vai embalando o leitor num movimento de elaboração do luto: o urso não se contenta com as palavras de apoio que recebe dos outros, ele tem seu tempo de entender o acontecido e é só quando esse tempo chega que a história parece se justificar.


Um livro-presente para uma criança que perdeu alguém? Sim. Mas, muito mais do que isso, um livro para ensinar os pequenos desde sempre que cada manhã é sim diferente da outra, mas todas são iguais em uma coisa: são inevitáveis.

3. Quando abro os olhos (editora MOV Palavras)


A escritora lituana Agné Bruziene perdeu suas duas avós em menos de dois meses. Para reagir contra a dor, ela compôs essa história (Agné escreve e ilustra o livro). Por sua referência a um acontecimento real, ainda latente na vida pessoal de quem conta, Quando abro os olhos (MOV Palavras, 2015) valoriza a importância de transformar o livro infantil em um espaço de reconhecimento e identificação: um lugar onde a criança possa elaborar sentimentos que ainda não conseguiu entender, como o medo de abrir os olhos e encontrar à frente um dia carregado de sensações ruins.


"Foi um desses livros que me puxou para a estante, eu não podia mais ficar sem ele. Foi um dos primeiros livros que compramos. Gosto do modo como Agne enfrenta a depressão: olha fundo nos olhos dela e é transparente ao nos falar disso. Suas imagens são fortes e até duras. Você sente a dor dela e o esforço para entender o que se passava, com palavras afiadas, sempre no lugar certo”, conta a editora Dani Gutfreund, da MOV Palavras, que trouxe o livro para o Brasil no ano passado.

4. O pato, a tulipa e a morte

O autor Wolf Erlbruch faz neste livro uma espécie de fábula sobre a morte. Na história, o Pato é o escolhido para ser levado da vida. Em uma narrativa naturalista e singela, a Morte chega para buscá-lo e o encontra cheio de dúvidas e questões pessoais. O Pato não quer ir embora. Não demora para que dois se tornem amigos, e compartilham experiências que só alguém muito vivo pode conhecer.

“Vai ser assim quando eu estiver morto”, pensou o pato. “O lago, sozinho. Sem mim.” Às vezes, a morte podia ler pensamentos. - Quando você estiver morto, o lago também não vai estar mais lá – pelo menos não para você.

É dessa amizade incomum que O Pato, a morte e a tulipa (Cosac Naify, 2009) parte para sugerir ao leitor a mesma perguntas do livro da Isabel Minhós: afinal, para onde vamos?



O fluir das coisas leva a história para um lugar absurdo, que é o lugar da ficção. O autor rompe com os estereótipos esperados de cada personagem, e faz a Morte se distrair com a vida. Já o Pato ensina sua nova amiga a viver, mergulhar no lago, escalar as árvores. “Por pouco a morte não ficou triste. Mas assim era a vida”. Quem quiser, dá para saber muito sobre o livro por esta vídeo adaptação.

5. Íris – Uma despedida


Este talvez seja o título da lista que menos faz concessões em relação a como dizer o que diz. Em Íris (Pulo do Gato, 2013), da escritora alemã Gudrun Mebs, a morte chega com uma certa secura indispensável, como certos acontecimentos da vida que nos atingem com a força de um furacão. A morte, às vezes, é esse furacão. E é preciso pelo menos não ignorá-lo para sobreviver a ele.


Se as imagens do livro são puro lirismo e simbologia (as belas ilustrações abaixo são da espanhola Beatriz Martín Vidal), a linguagem aqui é mais incisiva.


Apesar de não se tratar propriamente de um livro ilustrado, as imagens aqui guardam a delicadeza de que o texto desvia: Íris está doente e quem vivencia a iminência da perda é sua irmã mais nova. A doença é metaforizada por flores de pétalas azuis que vão brotando do corpo da menina e pouco a pouco se apropriando dela. A morte, em Íris, é mais um movimento em torno da vida, e vai viravolteando através das percepções da menina: a cama vazia, o silêncio dos pais, a melancolia do avó. E só para o leitor não ficar sem consolo depois de tanta realidade, o livro presenteia quem vai até o fim com as palavras do grande Bartolomeu Campos de Queirós:

Ah!, o eterno é o sempre.

Não tem nós de nascimentos

ou embaraços de mortes.

E o pensamento, este

é terreno demais para

decifrar intenso mistério.

6. Meu amigo pintor


O encontro de um menino de 11 anos com um velho artista só poderia resultar em uma troca maravilhosa, cada um aprendendo com o outro o que a vida pode ser. Aprender a desenhar um coração entristecido, ou como as cores podem dar pistas sobre o que sentimos. Mas acontece que nem o menino e nem o artista (e às vezes fica difícil saber quem é quem) sabia que o desfecho seria o que foi. Do desencontro em diante, o menino aprende a lidar com os seus porquês. “Pra mim, morte também é coisa vermelha, coisa difícil de entender. Mas se ela vem feito ela vem pra tanta gente todo dia, aí fica mais fácil um pouco de sacar (...) Acho que é por isso que eu olho tanto pro vermelho que ele pintou aqui no álbum. Pra ver se eu entendo.”


Meu amigo pintor, escrito por Lygia Bojunga com inspiração em seu irmão Cláudio, é narrado em primeira pessoa, em forma de diário de criança, e não é a toa. Este é um livro para descobrir a cada virar de página, pegar na mão do menino Claudio, e desvendar junto com ele o desconhecido, ajudá-lo a atravessar o escuro. “De repente comecei a me sentir todo escuro por dentro. Tão escuro que não dava pra enxergar mais nada dentro de mim”. Como acontece sempre na vida, quem sabe no caminho o leitor encontra uma clareira?



7. No oco da avelã

Já pensou viver em um mundo onde seja possível agarrar a morte pela mão e impedi-la de fazer seu trabalho? O menino Paul cria esse mundo para impedir que a mãe vá embora, e prende a Morte dentro de uma casca de avelã. De repente todos param de morrer. Nem os pescadores conseguem peixes, nem as pessoas conseguem comida: as plantas não se desgrudam da terra e os ovos não podem mais ser quebrados. Na tentativa de parar a morte, o menino parou a vida!


É aí que Paul entende que as coisas são feitas de contrários. A dupla vida-morte é um desses pares: um não se movimenta sem o outro. Parece tão óbvio quando alguém conta, não é mesmo? Mas o leitor acompanha Paul em sua lenta descoberta dessa verdade até que as coisas ganham mais sentido. Escrito pela autora francesa Muriel Mingau, No oco da avelã (Edições SM) é cheio de poesia do texto às imagens. As ilustrações de Carmen Segovia Moreno (acima), parecem saltar das páginas.




8. Ismália

Se para muita gente escrever sobre a morte já é literatura das mais cabeludas, falar de suicídio poderia ser uma tarefa impossível. Não fosse por este livro, Ismália, de Odilon Moraes (Cosac Naify, 1ª edição 2ª edição 2014). A história começa, e o leitor sente que já sabe onde vai dar. E sabe mesmo. Odilon faz neste livro um reconto gráfico do famoso poema simbolista de Alphonsus de Guimaraens, com aquarelas cheias de lirismo. Um conteúdo que a criança pode até estudar na escola, na disciplina de Língua Portuguesa, mas que fica sempre no âmbito do movimento literário a que pertence, da métrica, da superfície do texto. Mas afinal, o poema fala de quê? Uma mulher louca que se lança ao mar. Como falar disso? Por que falar disso?


Como diria a Clarissa Pinkola, não falar de assuntos difíceis com as crianças é deixá-las desprotegidas. "Toda criança deve receber o mapa e o treinamento para penetrar as florestas claras e sombrias do mundo". A editora Isabel Coelho, quando escreve o texto do posfácio, resume tudo isso de um jeito bonito e certeiro. "Difícil explicar as razões que fazem desse poema ilustrado uma obra a um só tempo coesa e dividida, iluminada e misteriosa. Talvez a beleza dessa duplicidade seja fruto de uma lógica às avessas, própria da loucura, que o poeta, também mineiro, Carlos Drummond de Andrade, chamou de 'a lua dupla de Ismália enlouquecida'".


Mais do que compor um livro-objeto e uma dança entre palavra e imagem, Odilon trabalha no livro o conceito de “design de leitura”, em que os elementos gráficos são pensados como mediadores da leitura. Como se recebesse um convite para se colocar no lugar da personagem, o leitor é conduzido por uma leitura vertical, como se fizesse um mergulho. E o mergulho é fundo, intenso e particular. Como a vida.


9. Roupa de brincar


"A literatura é um pulmão, onde a gente consegue respirar melhor e compreender no terreno simbólico o que não é fácil de ser digerido". Em uma entrevista recente para o UOL Educação, a editora Márcia Leite, da Editora Pulo do Gato, definiu assim a sua missão de levar adiante os tais "livros difíceis", que desafiam o pudor de contar para as crianças o que é a vida. Roupa de brincar (Pulo do Gato, 2015), de Eliandro Rocha e Elma, é mais um dos muitos de seu catálogo que sabem como fazer isso.


Com a história da menina que um dia chega na casa da tia e vê tudo transformado em um desbotado desconhecido, o livro coloca no campo do simbólico a representação entre o real e o imaginário. Tia Lúcia está diferente do que costumava ser, e nada é mais importante do que entender por que ela de repente resolveu se vestir de preto. Para o leitor desavisado, é um convite para entrar, afinal, não tem nada de triste no título. Aqui, não importa tanto quem partiu, mas quem ficou, e o que fazer para amenizar o preto e branco em que o colorido da vida às vezes se transforma.


Como trazer a alegria de volta se o lugar onde ela morava também se transformou em outra coisa? Como familiarizar a criança com as novas cores que uma mudança pode trazer? Um livro ilustrado em que a imagem continua uma conversa iniciada pelo texto. Ao contrário do que se pode pensar quando lemos a sinopse dessa história, não é a criança quem precisa de ajuda para elaborar a partida, e sim o adulto. Em uma sacada tão genial quanto sutil, o livro sacode as nossas falsas certezas sobre a capacidade das crianças de se aproximarem com naturalidade daquilo que não conhecem.



10. Meu filho pato - E mais contos sobre aquilo de que ninguém quer falar


Você olha para o título Meu filho pato (Companhia das Letrinhas, 2011) na estante e pouca coisa parece vir à cabeça. Mas, se o título engana, o subtítulo entrega a que veio: Contos sobre aquilo de que ninguém quer falar. E a morte quase sempre parecer ser isso, aquilo que não conseguimos nomear. Organizado pelo escritor Illan Brenman em parceria com uma equipe de psicólogos especialistas no assunto do Instituto 4 Estações e ilustrado pelo espanhol Rafael Antón, o livro traz textos de gêneros tão diversos quanto podem ser as variações de morte que encontramos pela vida. Como se chamasse para uma roda de histórias, convida autores como Angela Lago, Roger Mello, Índigo, César Obeid. Tudo orquestrado para ficar difícil recusar o papo. Uma longa conversa que dá espaço para o humor, a melancolia, o non sense, o cordel, a poesia: tudo para falar com as crianças sobre esse elemento inevitável da vida.


Com os versos bem rimados Hoje trago muita sorte, Pois a rima de cordel Servirá como transporte Pra dar vida para a rima Para lhes contar da morte (César Obeid)


#morte #lista

Posts Destacados 
Posts Recentes 
Siga
  • Facebook Social Icon
    Garimpos afins
    Procure por tags
    Nenhum tag.
    bottom of page