O dicionário dos meninos de Abóboda
Qual é a definição da palavra definição? O que fica de fora quando encaixamos uma palavra inteira em uma explicação só? Foi talvez pensando nessas coisas que surgiu o assunto do texto de hoje.
Isso porque descobri há pouco o livro “O dicionário do menino Andersen”, do escritor metade luandense, metade português Gonçalo M. Tavares (Planeta Tangerina). Apoiado nas ilustrações quase icônicas e minimalistas de Madalena Matoso, o livro traz verbetes de A a Z com definições criadas por uma criança insatisfeita com as explicações que já existiam para cada coisa. "O menino Andersen era um grande inventor e não andava nada satisfeito com as definições de palavras que lia no dicionário. Por isso decidiu começar a escrever um dicionário novo, um dicionário que entusiasmasse os seus amigos", conta sinopse da Planeta Tangerina. Mas o que mais importa ela não conta: desconfiar de explicações que não incluam a alma das coisas. Porque a invenção vai a lugares que a verdade não alcança.
"Por exemplo, pensa nas cascas de uma laranja: elas são ou não os restos de prazer que tiveste ao comer?" "Quando transportares um lixo num saco e te perguntarem o que levas na mão, responde: são os restos das minhas alegrias de ontem"


O livro por si só já é um manual de humildade e um alerta de que não podemos querer saber tudo sobre as coisas. Mas não pára por aí. Na verdade, este é só o ponto onde a história começa.
As crianças da Escola Básica Padre Andrade, em Abóboda, distrito de Lisboa, leram essa história e resolveram criar suas próprias definições – talvez por acharem que mesmo as de um grande escritor não eram suficientes (e nunca são!). E de repente o pequeno dicionário criado pelas crianças me pareceu mais importante do que todo o resto.
Porque desse universo de definições inventadas, surgiram verdades maiores que as do Dicionário com letra maiúscula. Verdades como essas aqui:




Na literatura infantil, não faltam referências para essas obras – tanto a de Gonçalo quanto a dos pequenos poetas de Abóboda. No Brasil, “Mania de explicação”, da Adriana Falcão, talvez seja o primeiro a ser lembrado. “Casa das Estrelas”, de Javier Naranjo, e até mesmo “O Paraíso São os Outros”, de Valter Hugo Mãe, com suas definições de família e diversidade. Diante de todos eles, não posso deixar de pensar o seguinte: as crianças são esses seres de genialidade discreta o suficiente para nos fazerem duvidar das explicações ao mesmo tempo em que aceitamos novas explicações. E descobrir que há um mundo inteiro fora dela.
Este é mais um livro para nos fazer mudar de lugar quando ousarmos pensar que a criança não sabe como nomear o que não entende, que precisa de um adulto para apontar o que é e o que não é. Sorte a nossa. Por isso é que Jorge Luis Borges tinha tanta razão quando explicou por que não acredita em nenhuma definição da palavra “Poesia”:
“O dicionário tem uma definição para cada coisa; quando são coisas muito concretas, a definição é talvez aceitável, porém muitas vezes o que tomamos por definição eu chamaria de aproximação. A inteligência opera por aproximações e estabelece relações, e tudo funciona muito bem, mas diante de certas coisas a definição se torna verdadeiramente muito difícil. É o caso muito conhecido da poesia. Quem conseguiu definir a poesia até hoje? Ninguém. Há duas mil definições que vêm desde os gregos, que já se preocupavam com o problema, e Aristóteles tem nada menos que uma Poética para isso, mas não há uma definição da poesia que me convença e que sobretudo convença a um poeta. No fundo, a poesia é isso que fica de fora quando terminamos de definir a poesia: escapa e não permite definição.”