Coleção "AMAR": diversidade é assunto de criança


“Devíamos ter medo de como as pessoas se odeiam, e não de como se amam”.
É assim que o escritor Valter Hugo Mãe começa o texto que vai na orelha dos livros da coleção infantil "AMAR". Poderia ser só mais um texto encomendado, mas aconteceu que foi amor. “Mandamos os livros em um dia, no outro de manhã as palavras dele já estavam na nossa caixa de e-mail”, conta Thiago Minamisawa, idealizador da coletânea. O encantamento pronto e natural do escritor português se estende também a Jean Wyllys, convidado para apadrinhar o projeto. “A literatura infantil tem que ser diversa, como a vida mesma é”, diz Jean como se abraçasse uma bandeira.
Contemplado pelo PROAC, o projeto “AMAR Coletânea de Livres Infantis” chega para falar com as crianças sobre nada menos que a matéria-prima da vida: diversidade. Afinal, todo mundo nasce para descobrir. Tudo cresce para se transformar.
Os livros serão distribuídos pela Secretaria Estadual de Cultura em escolas, centros culturais e bibliotecas públicas de São Paulo, além das unidades do Sesc com quem firmaram parceria. Produzidos também em formato Daysi (audiodescrição) pelas mãos da Fundação Dorina Nowill, levantam duas questões fundamentais: a urgência de falar sobre identidade e a importância de receber estímulo dos órgãos públicos. Aqui, a importância da acessibilidade se sobressai ao próprio objeto: simples para ser para todos.
Coordenado pelo cineasta Thiago Minamisawa junto com um coletivo de escritores e ilustradores, o projeto é formado por quatro “livres” – como eles chamam – de quatro duplas de autores diferentes: Eu (Mateus Rios e Thiago Minamisawa), Nonada (Cris Eich e Bruno H Castro), Existo (Marcia Misawa e Vinícius Cardoso) e Safo (Rosana Urbes). Todos trabalham com referências diversas e têm um denominador comum: querem ser manifestos de liberdade. “O que estamos fazendo não é livro, é livre. Serve para todas idades”.
Thiago conta para o Garimpo como tudo isso começou, a vontade de construir um espaço de diálogo sobre identidade e representação. “Eu sentia que faltava um lugar onde a criança pudesse ter espelhamento sobre diferenças de gênero. Olhando para a literatura infantil, encontrei poucos livros sobre o assunto, e mesmo assim era sempre algo muito específico. Nunca existiu uma coletânea que abordasse as quatro letras do movimento LGBT. A gente percebeu que, por regras de mercado, acabaram se formando alguns cânones da literatura infantil, o que obriga os livros a pertencer a alguma categoria específica”.
A fala de Thiago faz pensar: se os rótulos existem, antes de ultrapassá-los é preciso conhecê-los um a um, não é mesmo? E a motivação para isso veio de mundos completamente distintos. Guimarães Rosa, Leonilson, Bachelard, Carl Jung, Buda, Ovídio, Frida Kahlo. E por isso poesia, filosofia, psicologia, artes plásticas, espiritualidade. Tudo isso é assunto pra criança.
Aqui, um pouquinho do livro "Existo":
É tão bom olhar uma coisa sem pensar
na sua palavra.
O que existe lá dentro solta para fora
Vem uma sensação de maravilha.

Eterno Palavra esquisita. Mas a gente muda tanto, o tempo todo. Será que o eterno existe? Acho que só na alma, por isso ela brilha. Eu sou como o caleidoscópio
que vi na escola.
Ele é redondo, redondo, e muda faiscante a
cada
voltinha
que dá.

E uma espiada em "Eu":


Inspirados por O paraíso são os outros, único título infantil do português Valter Hugo Mãe, o coletivo de artistas sentiu o estalo: “Este livro não segue uma estrutura considerada padrão, mas ainda assim se afirma como literatura infantil. Foi aí que a gente percebeu que os parâmetros internacionais de livros sobre esse tema estão mais avançados que os do mercado editorial brasileiro. Nós temos um mercado super retraído, com muito medo, principalmente depois que o Governo Federal fechou o edital de compras. Muitas editoras estão lutando para sobreviver, e acabam publicando muito mais livros conciliadores do que transformadores.”
Conciliação x Transformação
Conciliar ou transformar? Qual dos dois movimentos é o da literatura infantil? Existe mesmo um papel a ser exercido quando o assunto é arte, linguagem literária, ilustração como linguagem?
“Durante o processo de pesquisa, teve muito esse questionamento: ‘o que estamos fazendo é mesmo literatura infantil? Se sim, pra qual faixa etária estamos falando?’. Mas aí entendemos que a recepção de uma criança a um livro infantil tem várias camadas, tanto a da autonomia – que é a que conversa diretamente com ela – quanto outras camadas que o mercado não privilegia, como a interpretação do desenho, a relação com a ilustração, a curiosidade sobre a sonoridade da palavra”, explica o autor.
E é aí que os livros preveem sempre dois momentos possíveis: a criança sozinha e a interferência do professor, da mãe, do pai. Este segundo ligado à delicadeza da interpretação, a diferentes possibilidades de abordagem e à própria concepção do adulto sobre o assunto.
“A questão da leitura mediada é muito importante aqui, como funciona a relação da criança com o adulto, promover a troca entre os dois, onde o adulto primeiro absorve e depois passa para a criança”, explica Thiago.
Em "AMAR", a diversidade é uma espécie de metabolismo geral, que rege o seu modo de estar no mundo e está presente em todos os aspectos dos livros, desde o prefácio até o formato, passando pela linguagem de cada autor e pelo caminho escolhido para chegar no assunto. “Coração é um órgão de partilha que não pede muita licença nem dá muita explicação”.
Se o texto de Valter Hugo Mãe começa com uma divagação, termina numa certeza quase impositiva: “Ostentem o amor. Vocês é que estão certos”.

O projeto “AMAR Coletânea de Livres Infantis” está em exposição na Casa das Rosas até o fim desta semana, dia 30 de abril.
Casa das Rosas – Av. Paulista, 37, São Paulo
Mais informações: https://www.facebook.com/amarlivresinfantis