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Empodere uma criança! Machismo e desigualdade social: grandes questões para gente miúda


"Se hoje lemos sem estranhar muito do que dizem estes livrinhos é porque, ao que parece, esse tal amanhã ainda não chegou. Tomara que não demore”.


É assim que termina o texto de abertura dos mais novos títulos da coleção “Livros para o Amanhã”, da editora Boitempo, pelo selo Boitatá. “As mulheres e os homens” e “O que são classes sociais?” acabam de chegar às livrarias. São os dois últimos da Coleção, premiada na Feira de Bolonha agora em abril. E que coleção. A editora responsável pelos livros da Boitatá, Thaisa Burani, define essas duas obras como “sementes de desconfiômetro”, uma espécie de iniciação à crítica social. “O sistema ensina as crianças a serem indivíduos ambiciosos, extremamente competitivos e não cooperativos. Ensina que não há tempo para nos ocuparmos de questões sociais, muito menos para tentar mudar o mundo”, explica Thaisa. “Além da empatia, ambos os livrinhos me parecem empoderadores”.

Como os próprios títulos sugerem, os livros são cada um a seu modo verdadeiras odes à igualdade, o primeiro em relação à disparidade entre os gêneros e o segundo uma reflexão sobre o que torna as pessoas desiguais. Literatura é lugar de liberdade, e esses livros sabem bem disso.

A fala dos editores no prefácio faz pensar: o que estamos ensinando às crianças sobre a relação homem-mulher, sobre os abismos sociais? A decisão de republicar uma coleção feita em 1978 na Espanha, que nasceu logo depois da morte do ditador Francisco Franco, revela que se ainda precisamos falar sobre repressão depois de 40 anos, ainda temos muito a aprender sobre democracia, tanto na política quando nas relações humanas mais cotidianas.




Se uma menina não se senta com as pernas fechadas, ela não é uma boa moça? Dizer o que pensa não é coisa de mocinha? Por que algumas pessoas têm que parar de estudar para trabalhar e depois passar a vida recebendo ordens? Pobres e ricos não são pessoas iguais com oportunidades diferentes?


Suprimir esses temas das mediações de leitura, da conversa em casa e do ambiente escolar é deixar à solta noções fundamentais para a sensibilização da criança em relação ao outro. Coisas tão simples quanto incentivar uma menina a brincar do que quiser, e dizer a um menino que está tudo bem se ele quiser usar cor-de-rosa. Esses livros são oportunidades para um primeiro contato com a ideia de igualdade, alteridade, liberdade compartilhada, individualidade.


Algumas reflexões do livro:


“A classe alta é

como uma jaula,

na qual é quase impossível entrar

e da qual ninguém quer sair”


“A classe alta

quer continuar sendo minoria,

para repartir o que tem entre menos pessoas”


"Já a classe média

acabou ficando no meio de tudo


Não é a que decide

(embora dê ordens),

nem é a que obedece

(embora passe a vida

cumprindo ordens)."


“Muitos pais educam os meninos

para que se tornem homens importantes.

Enquanto as meninas são educadas

para se tornarem as esposas

dos homens importantes.”

As ilustrações são textos à parte, e terminam de dizer o que as palavras não disseram. Por isso, a leitura das imagens aqui proporcionam ideias fortes. Como disse a Thaisa, a ilustração “é uma forma mais fenomenológica e imaginativa de interpretar o mundo”. Ela dá o exemplo de desenhos simples que provocam reflexões profundas. “Há uma passagem do texto [de “As mulheres e os homens”] que diz simplesmente “Por isso os meninos se vestem de um jeito e as meninas de outro”, que não faz nenhum juízo de valor, é apenas uma constatação da realidade. Mas a ilustração que acompanha essa frase mostra um garotinho usando um vestido e exibindo um trejeito tipicamente feminino para o pai, que está visivelmente carrancudo. No livro, os desenhos são como denúncias silenciosas: uma mulher algemada a um homem, uma menina dentro de uma gaiola, a mulher no papel de progenitora resoluta e dócil.

Segundo a Boitatá, “o desafio da ilustradora espanhola Luci Gutiérrez foi criar uma série de desenhos que atualizasse o debate sobre gênero e o tornasse acessível ao universo infantil”. Imagens que remetem à submissão histórica que até hoje posicionam o feminino (seja em uma mulher ou em homem homosexual) em uma posição inferior na escala de importância social e que ainda não foi superada pela sociedade.


40 anos depois, o que mudou?

Conhecida no mercado editorial como “a casa do pensamento crítico”, a Boitempo Editorial faz com o selo Boitatá e o público infantil o mesmo trabalho de repensar o mundo, o capitalismo, as regras sutis que regem uma vida compartilhada em sociedade.


Estes livros fazem parte de uma série de quatro volumes dirigida a jovens leitores que foi publicada originalmente entre 1977 e 1978, pela editora La Gaya Ciencia, de Barcelona, na Espanha. Naquela época, fazia menos de três anos que o ditador Francisco Franco havia morrido, e a Espanha vivia um período de transição que traria as primeiras mudanças democráticas. Enquanto isso, o Brasil estava em plena ditadura. Quase quatro décadas depois, os livros foram garimpados em um sebo pela equipe da editora espanhola Media Vaca, que considerou que tanto o espírito quanto boa parte do texto continuavam completamente atuais. Por isso decidiram reeditá-los, desta vez com novas ilustrações. A ideia e o texto foram concebidos por um grupo multidisciplinar de educadores e pesquisadores espanhóis, o Equipo Plantel, cada qual com um ilustrador diferente. Na edição da Boitatá, quase nada foi alterado ou acrescentado.


E aí voltamos inevitavelmente ao começo deste texto. Uma coleção que se chama Livros para o amanhã, e ainda estamos falando sobre ela, respirando com alívio por esses livros dizerem tudo o que dizm, por olharem nos olhos das crianças e dizerem tanto sobre o que às vezes não conseguimos. Talvez o amanhã não tenha mesmo chegado. Tomara que não demore.


Aqui, o papo com a editora Thaisa Burani na íntegra:

Garimpo: O livro "As mulheres e os homens" adapta o debate sobre gênero para o universo infantil. Na sua opinião, que tipos de concessão é preciso fazer para alcançar um objetivo como esse?

Thaisa: Tanto nessa nova edição espanhola quanto na nossa tradução optou-se por manter o texto totalmente preservado. Mas sim, acho que o grande mérito da Media Vaca foi a escolha dos ilustradores para essa edição atual. No caso específico do livro "As mulheres e os homens", o trabalho da ilustradora Luci Gutiérrez é louvável, porque ela consegue criar narrativas visuais muito poderosas, que enriquecem o texto e vão muito além dele. Só para dar um exemplo, há uma passagem do texto que diz simplesmente “Por isso os meninos se vestem de um jeito e as meninas de outro”, que não faz nenhum juízo de valor, é apenas uma constatação da realidade. Mas a ilustração que acompanha essa frase mostra um garotinho usando um vestido e exibindo um trejeito tipicamente feminino para o pai, que está visivelmente carrancudo, desaprovando o gesto. É uma imagem forte, da qual podemos depreender uma série de interpretações e questionamentos. Nesse sentido, a ilustração é uma ferramenta muito poderosa no trabalho com o público infantil, porque ela diz muito sem precisar de nenhuma palavra. É uma forma mais fenomenológica e imaginativa de interpretar o mundo, e nesse livro específico, que trata de um tema complexo e “adulto”, ela soube jogar muito a favor.

Já "O que são classes sociais?" pretende discutir com a criança o que leva uma sociedade a ser desigual. Você acha que falta empatia à criança da sociedade de hoje? Se sim, quais são os fatores que levam a isso?

A empatia é uma qualidade inerente ao ser humano, essencial para a preservação da espécie. E, assim como todas as outras emoções e sentimentos, ela precisa ser trabalhada e exercitada, a fim de formar a nossa inteligência emocional. Mas numa sociedade capitalista e competitiva como a nossa, cujos valores máximos são o lucro e o sucesso individual, muitas dessas qualidades empáticas acabam sendo esquecidas, para não dizer solapadas. Não podemos dizer que esse fenômeno é uma novidade do nosso tempo, mas talvez ele esteja sim ficando mais acirrado. Particularmente acho isso muito perigoso, porque gera toda uma sociedade de indivíduos isolados que não se importam com os outros à sua volta, ou que se conformam com discursos meritocráticos hipócritas. Acredito que quando mais cedo um ser humano olhar para essas questões e se sensibilizar com elas, mais autonomia ele terá para nortear sua formação num sentido mais humanista e cooperativo.

Que ferramentas o livro utiliza para fazer a criança enxergar o outro como seu igual?

Acho que o grande mérito do livro é tentar expor, de forma simples e direta, que as pessoas são iguais apenas no discurso, pois existe uma série de vantagens e desvantagens sociais que são dadas de berço. O livro evidencia que a nossa sociedade é pautada pelo mercado de trabalho, que as profissões nos tornam diferentes, e tenta mostrar que o filho do rico não vai ser gari, simplesmente porque o filho do rico vai estudar nos melhores colégios e, quando crescer, vai para uma boa universidade se formar na carreira que ele escolher. Já o filho do pobre, se não quiser ser gari, precisará se esforçar muito acima da média para compensar o fato de ter estudado em colégios piores, ou o fato de ter de começar a trabalhar bem mais cedo. Claro que é uma lógica simplista e introdutória, nossa sociedade possui contradições e elementos muito mais profundos do que isso, mas entendo esse livro como uma primeira “semente do desconfiômetro”, uma introdução à crítica social.

Em que sentido a educação atual contribui para que existam lacunas de entendimento na cabeça da criança em relação a esses dois temas – disparidade de gênero e classes sociais?

De modo geral, nosso sistema educacional está voltado para a lógica de mercado. O senso comum entende a escola como um investimento, e entende a criança como um profissional em formação. Eu mesma já sou de uma geração de crianças que tiveram a rotina transformada em uma grade de horários, que precisavam se dividir entre a escola (educação formal) e as aulas de inglês, natação, piano, teatro, pintura etc. (especializações). E acredito que o acirramento do neoliberalismo nos últimos vinte anos tenha aprofundado essa dinâmica. Então embora muitas escolas inseridas nessa lógica tenham seu valor, não podemos negar que é um sistema que, colateralmente, ensina as crianças a serem indivíduos ambiciosos, extremamente competitivos e não cooperativos. Ensina que não há tempo para nos ocuparmos de questões sociais, muito menos para tentar mudar o mundo ou a nossa realidade. E, como não há tempo, já que tempo é dinheiro, o melhor a fazer é se adequar a essa realidade e se contentar dentro da sua bolha individual de sucesso. No limite, são lacunas comuns justamente porque não dão retorno financeiro – ao contrário, apenas desviam da rota.

Além dos temas já trabalhados na coleção Livros para o Amanhã, que outros assuntos você considera de importância vital discutir com a criança? Na sua opinião, qual é o limite entre o universo da criança e o universo do adulto – se é que existe um limite?

Como você mesma levantou, a empatia é um norte do selo Boitatá. Então queremos abordar todas as temáticas que envolvam essa questão, como direitos humanos, tolerância, representatividade, cidadania e respeito à diversidade. Para dar um exemplo concreto, temos no forno agora dois livros de ficção. Um deles conta a história de um Monstro Rosa divertido e trapalhão que nasce num ninho de bichos brancos sisudos. Muitas abordagens podem nascer daí, como bullying, respeito às diferenças e até mesmo subversão.

Já o segundo conta a história de um pássaro que tem as asas curtas e não pode voar, então procura uma maneira de solucionar isso. Ao mesmo tempo que trabalha a questão da solidariedade e do compartilhamento de saberes (pois o pássaro descobre que muitas outras aves não podem voar), discute de uma forma muito delicada a questão das deficiências físicas. Além da empatia, ambos os livrinhos me parecem empoderadores (ambos os protagonistas são vítimas que lutam por alterar sua situação), o que considero fundamental nesse tipo de trabalho.

Quanto aos limites entre o universo infantil e o do adulto, acho que acima de tudo deve estar a ética. Ou seja, em termos temáticos, talvez seja possível falar de qualquer coisa, desde que a abordagem se paute em princípios éticos. E com “princípios éticos”, eu quero dizer não ser sensacionalista, não ser dogmático, não se aproveitar da sua condição de adulto mais experiente para impor a sua própria visão de mundo. Como editora, eu defendo muito o direito ao questionamento. Porque mesmo na coleção Livros para o Amanhã, que é paradidática e defende claramente certos valores (democracia, justiça social e feminismo), a abordagem é aberta a questionamentos e a diferentes interpretações, além de ser claramente introdutória. É, em suma, um convite ao aprendizado. E é nesse sentido que pretendemos caminhar.

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